A insônia do Vô Miguel
Sentado na poltrona de couro, o velho tragava uma dose de uísque
Às vezes, vô Miguel tinha insônia.
Eu ia dormir na casa de meus avós e, talvez por estranhar o ambiente, acordava em meio à madrugada. Vendo a luz da sala acesa, ia em direção ao cômodo e encontrava o velho ali, naquele horário difuso entre duas e meia e quatro da manhã, noite densa, taciturno.
Sentado na poltrona de couro, o velho tragava uma dose de uísque, fumava o cigarro Benson da caixa dourada e costumava anotar algo em um caderninho de capa preta. Depois, de dia, escondia o tal do caderno, para que ninguém bisbilhotasse.
Foi só depois que meu avô morreu que encontrei o caderno, numa gaveta trancada, ao lado de sua coleção de canetas. Haviam ali pensamentos nem sempre suaves sobre a família, sobre sua vida financeira (descobrimos que tinha uma dívida considerável depois que ele morreu, e que ninguém sabia), sobre sua relação com álcool, sobre sua morte.
Homem antigo, advogado, chefe de família, creio que meu avô tivesse poucas pessoas para as quais pudesse contar de suas dores. Refugiava-se na bebida, como na literatura. Devo a ele meu amor pelos livros.
No caderninho, encontrei a seguinte frase, escrita em letras garrafais, provavelmente um lampejo de alguma de suas noites de solidão, bebida e insônia:
“Na madrugada, sou o mordomo de mim mesmo”.
E uma outra frase, essa não dele, mas de Guimarães Rosa, que encontrei anotada mais de uma vez. Talvez já antevisse sua morte, o câncer de pulmão fulminante, que viria não muito depois. Citei-a na fala que fiz em sua Missa de Sétimo Dia:
“As pessoas não morrem, ficam encantadas”.
Vô Miguel ficou encantado. Saudades.
¹ A cena é de “O Fio da Navalha" (1946). O livro, de Somerset Maugham, era um dos prediletos de meu avô.
Uau!